Crónica de Eugénio Ruivo — O tempo do sonho interrompido aos 9 anos!

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Crónica de Eugénio Ruivo
O tempo do sonho interrompido aos 9 anos!

 

Eram cinco irmãos, todos filhos de agricultores naturais da freguesia de A-dos-Negros concelho do Bombarral, que de um momento para o outro, em 1931 se viram obrigados a abandonar a escola e ir trabalhar para o sustento da família.

Foram distribuídos para vários pontos do país.

O pai transformava lenha em carvão na aldeia para ir vender, a mãe iniciara a venda de peixe num lugar da praça do Bombarral.

Do grupo Gracinda Ruivo (minha mãe), que havia completado a 3.ª classe, (sente um grande choque por não terminar a 4ª classe, ficando o estudo para trás), vendo-se de trouxa às costas para ir trabalhar para Lisboa.

Vai servir para casa do Sr. Dr. Vieira e da Sr.ᵃ D. Maria Antónia que viviam na Av. da República n.º 100.

A aldeia ficara para trás, as brincadeiras com os seus amigos terminaram, o tratar dos animais ou a ajuda nas hortas, sobretudo a escola que deixara de poder frequentar.

Para Lisboa levava as memórias da infância, o afastamento dos seus pais, pensando no futuro do sonho adiado da escola.

Porquê esta discriminação a tantas crianças?

Recordava alguns anos depois do 25 Abril de 1974, que um seu tio, o José Picote havia desaparecido sem dar rasto por “perseguição política”. Algo que a marcou por ser muito carinhoso, afetuoso e humanista.

De repente, Gracinda se torna num “adulto em miniatura”, sem compreender o que se passava.

Durante a noite chorava pela falta do afeto dos seus progenitores, por não ter continuado os estudos, vendo as filhas do casal onde trabalhava (com a sua idade), a irem para a escola. Sentia-se amargurada, mas não conformada, e observava as filhas dos patrões que tinham acesso ao ensino, mas que ela e a milhares de crianças da sua idade lhes estava vedado, (o sonho da escola), esse estava sempre presente.

FOTO CAXIAS 26 ABRIL 1974
Caxias, 26 de abril de 1974

Acesso Ao Ensino — Só Para Uma Elite

Aquela criança como muitas outras iniciavam o trabalho infantil que, entretanto, havia quem considera-se ser um fatalismo, e determinismo do regime de ditadura militar que se havia implantado, então em Portugal, para se acentuar a partir de 1933 com a instauração da ditadura fascista até ao 25 Abril de 1974.

Gracinda ouvia pela surdina que sempre houvera “ricos e pobres”, uns que tinham direitos, outros, a grande maioria que lhes estava vedado como no seu caso o acesso ao ensino.

Bem cedo questionava o facto, mas as respostas eram evasivas.

No 4.º andar onde trabalhava, havia uma grande varanda, que lhe estava restrita ao seu acesso. Defronte existia o Mercado Geral do Gado de Lisboa, saia de tarde aos domingos acompanhada, e de quando em quando observava desfiles de militares e da Legião Portuguesa, com cidadãos a levantarem o braço (saudação nazi), sem perceber que gesto era aquele.

Na Alemanha preparava-se a chegada do partido nazi ao poder, mas nada faria prever o que iria acontecer, com centenas de milhares de cidadãos, fugindo da “barbárie nazi”, e dos milhares de mortos ocorridos nos “Campos de Concentração”.

Em casa, as conversas dos seus patrões ocorriam em surdina, e em (1936) escutando, soubera que havia “rebentado a Guerra Civil Espanhola”. O Dr. Vieira falava de um seu parente (jovem) que se fora alistar para (combater) ao lado do Governo Republicano em Espanha.

O dia a dia de Gracinda era passado na cozinha a ajudar a feitura das refeições, ou a limpar a casa, na qual podia ouvir (na sala de jantar) as filhas dos patrões a falar em inglês, e isso levava-a a estar atenta (imaginando) o sonho que a perseguia, da escola por concluir e dos seus amigos que nunca mais os vira.

Os anos decorriam e, já como adulta, em 1964, por razões económicas, ela e o marido, vêm-se impossibilitados de proporcionar aos seus filhos, eu e o meu irmão Manuel, na continuação dos estudos, após a conclusão do ciclo-preparatório.

Entre outras formas de sobrevivência, torna-se vendedora de roupas, em feiras. Percorre o País, e às quintas-feiras (todos Nós) nos levantávamos de madrugada, carregávamos o carro, rumando em direção à Feira da Malveira, em Mafra.

Conclui o 1.º Ciclo Só em 1986, após o 25 Abril!

Foi já depois da data libertadora de Portugal, com a Revolução do 25 Abril de 1974, que a minha mãe, aos 63 anos, volta de novo à escola e conclui o Ensino Primário.

 

Eugénio Ruivo 2024-01-07

Nota da redação: no ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de abril, o Jornal de Mafra pediu a Eugénio Ruivo, um ex-preso político residente no concelho de Mafra, que nos contasse como se vivia em Portugal no período da ditadura. Serão 12 crónicas em 12 meses, que tendo em conta a atuais guerras na Europa e no Médio Oriente, a situação política em França e na Argentina e as próximas eleições nos Estados Unidos, poderão ajudar-nos a lançar um olhar para trás, olhando para a frente.


Eugénio Ruivo
Nasceu em Lisboa em 1953. Reside no concelho de Mafra e fez o Mestrado em Educação Física e Desporto no Agrupamento de Escolas Professor Armando Lucena. Mantém atividade política desde 1968, tendo passado pela CDE (comissão Democrática Eleitoral), pelo MAESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa) e participado no 3.º Congresso da Oposição Democrática em Aveiro. Em 1970 adere ao Partido Comunista Português. Em janeiro de 1971 é preso pela PIDE/DGS, voltando a ser detido em março e em novembro de 1971, sendo então enviado para o Forte de Caxias. Novamente detido em 1973 e finalmente, a 6 de abril de 1974 é libertado a 27 de abril, com os restantes presos políticos, pelo Movimento das Forças Armadas.

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14 Thoughts to “Crónica de Eugénio Ruivo — O tempo do sonho interrompido aos 9 anos!”

  1. Sequeira da Silva

    Muito obrigado Eugénio Ruivo.
    Sempre o admirei pela sua simplicidade e pela naturalidade da sua forma de estar e pela verdade que transborda das suas convicções políticas. Este belíssimo texto reforça as minha suposições e a partilha de o ter como amigo.
    Há muito tempo que penso e escrevo sobre um ensino público focado nas elites, a que eu chamo actores, e na desventura dos figurantes, que servem sobretudo para preencher estatísticas e para servirem os que se intitulam seus protectores.

  2. Margarida Vicente da Silva

    Felicitar a Redacção pela brilhante ideia de publicar este tipo de crónicas!
    O Eugénio retrata fielmente como se sobrevivia – muitas vezes não era viver- neste país antes do 25ABRIL74. Quer do ponto de vista económico como social e cultural. Era muito dificil ter acesso ao Ensino à Saúde à Cultura ao mercado de trabalho. E se alguém discordava da política vigente, era imediatamente reprimido. E se estava organizado numa associação num cineclube, numa cooperativa – tudo legal- ainda pior! Claro que só havia a União Nacional,unico partido do regime fascista. Nada mais era permitido!
    Discordar fosse do que fosse era imediatamente reprimido. Por exemplo,bastava colocar o nome num abaixo assinado para ter problemas; se fosse funcionário público era logo demitido.
    Editar um livro,uma revista ,um jornal um programa de cineclube ou até um simples postal ,tudo era sujeito à Comissão de Censura!! E corria- se o risco de cortes no texto …ou até ser tudo cortado! Escrever para passsar na Censura era uma arte!!
    Conheci o Eugénio e o irmão na CDE de Lisboa e mais tarde na Cooperativa Devir de divulgação de livros,revista,discos. Foi na sede,na Duque de Loulé que soube da prisão deles . Tão jovens ! A PIDE estabeleceu uma fiança de 30 contos! Uma fortuna! Indignados e revoltados organizamos um grupo que conseguiu ,através de muitas iniciativas arrajar a quantia para poderem ser libertados.
    Foram tempos negros mas a solidariedade era enorme! A todos os níveis!
    Obrigada também aos irmãos Ruivos que contribuiram para que houvesse um 25abril!!

  3. António Manuel da Luz Cabrita

    Eugénio Ruivo relatou memórias vividas que muitos já esqueceram ou tendem a esquecer. Talvez porque a memória das pessoas seja curta, demasiado curta, um pouco por todo o lado vão emergindo governos populistas e de inspiração nazi. Temo muito que a História seja cíclica e que apanhe tanto os mais desprevenidos como os mais avisados.

  4. Isabel Faria

    Não temos, ainda hoje, a noção das repercussões da falta de investimento e da violência de que as crianças de meio familiares desfavorecidos foram vítimas antes da revolução. Sim, muita violência quando são exploradas a nível de trabalho quando deveriam estar a crescer saudavelmente, com tempo de aprender e brincar. 25 de abril sempre!

  5. Maria Graça Figueiredo

    Um Povo é a sua memória, passado, experiências. Falar dos tempos negros do fascismo é urgente e sempre necessário, quando na surdina há vozes saudosas desses tempos.
    Bonita e merecida homenagem à D. Gracinda, Mulher de garra, terna e de grande coragem.
    Obrigada ao Eugénio pelo seu emocionante testemunho, pela sua coerência, resistência e espírito de lutador revolucionário.
    Fascismo Nunca Mais!! 25 de Abril Sempre!!

  6. Luís Farinha

    Não conseguiremos nunca ter a noção (ou avaliar) os efeitos perniciosos da (des)alfabetização promovida, de forma intencional, pelo Estado fascista. O seu lema de “ler, escrever e contar”, (mais reservado a homens), ignorou a herança progressista da I República neste domínio, produzindo um retrocesso que nunca mais foi recuperado. Por isso, os testemunhos pessoais, como o de Eugénio Ruivo sobre a tristeza manifestada por sua mãe, falam mais do que todas as estatísticas. Hoje, sabemos que o regime democrático implantou o sistema Básico e Secundário universal e gratuito. Os efeitos estão à vista. Mesmo no Ensino Superior, deixámos de ter uma micro-elite para sermos dos países como mais formação superior na Europa e no Mundo. Porém, os efeitos da educação nas sociedades são visíveis a muito longo prazo. Ainda há poucos dias soubemos que três quartos dos pais dos nosso alunos que frequentam o Ensino Básico e Secundário têm ainda hoje o Ensino Básico. De tal modo foi fatal este retrocesso imposto pelos regime fascista! Oxalá os decisores se não acanhem de investir na Educação nos próximos anos. Porque já há quem defenda que estamos a formar jovens a mais para o nosso mercado, já que eles têm de emigrar. Seria pior a emenda que o soneto se, com este argumento, voltássemos atrás. Longa Vida para Eugénio Ruivo e para as suas Crónicas no Jornal de Mafra.

  7. Luís Farinha

    Nunca viremos a saber (e a avaliar) os efeitos tremendos do atraso cultural sofrido pelo país em função da (des)alfabetização imposta pelo Estado fascista. Na verdade, ignorou a herança progressista da I República, impondo o célebre programa do “ler, escrever e contar”. O problema é que nem esse programa mínimo foi universalmente aplicado, como se comprova por este testemunho de Eugénio Ruivo sobre a sua mãe. De facto, as mulheres eram o elo mais fraco. Hoje, com o regime democrático, temos um ensino Básico e Secundário universal e obrigatório. Por isso, os resultados estão à vista. Mesmo no Ensino Superior passámos do ensino para micro-elites para uma das taxas mais altas de ensino superior da Europa e do Mundo. Contudo, os efeitos económicos, sociais, culturais e humanos do atraso português são ainda hoje incalculáveis. Soube-se há dias que três quartos dos pais dos alunos portugueses têm apenas o Ensino Básico. Estes são os efeitos terríveis, a longo prazo, do desinvestimento na Educação. O testemunho de Eugénio Ruivo é, a todos os títulos, precioso e esclarecedor. A tristeza da sua mãe pelo seu estado de analfabetismo é muito mais esclarecedora do que todas as estatísticas – é humana e real.

  8. Josée Conchinha

    Ao Eugénio Ruivo meu colega do atletismo de muitos anos e como “capitão de Abril que fui, primo de Fernnado Salgueiro Maia, ambos pertencentes aos templários do Distrito de Portalegre bem como eoutros capitães de Abril( Jaime Neves, Jordão Morazzo, Lemos Ferreira, e outros, um abraço. Como ele bem sabe, não concordámos com o PREC e juntámo-nos de novo no 25 de Novembro de 75. Aí sim, podumos alcançar a tão desejada de mocracia.
    José Conchinha

  9. Carlos Bernardo

    O Eugénio Ruivo é uma força da Natureza. Sente que tem uma missão a cumprir: testemunhar de viva voz o tempo do fascismo. Aqui escreve; nas Escolas, com entusiasmo e excelente capacidade de comunicação, transmite às novas gerações o seu testemunho , sobretudo a sua vivência de preso político. Vi-o em várias turmas e vi nos alunos o interesse em ouvi-lo. Para os jovens de hoje, realidades como o fascismo ou o 25 de Abril são assuntos quase tão distantes como a Pré-História. O Eugénio, enquanto testemunho vivo, consegue fazê-los “viver” aqueles tempos e mostrar-lhes que a liberdade não é um direito eternamente adquirido. Parabéns Eugénio!

  10. Pedro Silva

    A história é uma dinamica que nunca pára e está sempre em evolução. Evolução essa que nem sempre é sinonimo de positividade. Mas a história é composta de acções e reacções, sendo que atualmente estamos a viver um cenário perigoso, onde muitos imaginam o que se passou à 50 anos atrás, mas no entanto, essa parte da história tem sido branquiada, por exemplo, onde é a sede da PIDE em Lisboa permitiu-se a construsão de um condominio de luxo e lá ficou um placa com os nomes dos martires, que sucumbiram aos disparos dos agentes de PIDE, encurralados. Era para ser um grande Museu Vivo num centro turistico e teriamos uma memoria viva no centro de Lisboa. Mas não, continuamos a viver com medo de por em cima da mesa a HISTORIA TÃO PROXIMA. Porque talvez entendessemos, quantos nos andam a governar e a servirsse em serviços ao nosso POVO! Cidadãos como o Eugénio Ruivo, são importantes para falar na primeira pessoa, para que hoje os mais novos possam ouvir e olhar nos olhos, um povo que apesar de sofrido , nos dias de hoje não desistem de lutar por uma justiça livre e franca e que acreditam que nada cai do ceu, e muito se conquista na força do pulso e na união das cabeças! Lutar sempre por causas que nos mantem fieis aos principios de Abril! Este texto que aqui escrevo já era mais do que motivo para a PIDE me estar a arrombar a porta e levar-me para os calaboços! Acreditar, Fazer e Lutar! Pelos nosso filhos para que eles aprendam a Lutar tambem por um FUTURO em LIBERDADE!

    1. Eugénio

      As suas palavras tão sentidas nos dias que ocorrem, e tão necessárias nesta unidade antifascista, assumem uma grande importância no seu apoio à crónica como espaço de Liberdade que é o Jornal de Mafra.
      Foi naquele espaço hoje transformado num condomínio de luxo, que milhares de cidadãos como refere, que durante grande parte do período da ditadura fascista até 1971, a PIDE/DGS seguindo em muitos aspectos os métodos nazis, torturou, humilhou, assassinou, cidadãos, ora por simples delito de opinião, ora porque lutavam pela Liberdade, contra a censura, contra a guerra colonial, pela liberdade sindical, pelo direito à greve, pelo direito de voto aos 18 anos, contra a desigualdade entre homens e mulheres, pela constituição de partidos políticos, pelo direito de acesso ao ensino de todas as crianças, e jovens e não apenas a uma elite, que viram as suas vidas também aqui por Mafra, dilaceradas, perseguidas, expulsas por serem funcionários públicos, e muitos que se viram obrigados a fugir do País como refugiados políticos. A Fome campeava aqui por todas as freguesias, com grande parte de crianças descalças.
      Um Povo Sem Memória Não Tem Futuro!
      Esta nossa ação pedagógica aqui e agora, constitui Graus de Liberdade que assumem nestes 50º Anos do 25 Abril, o reconhecimento por todos aqueles que ousaram dizer Não e que sofreram…
      25 Abril Sempre!

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  11. Eugénio Ruivo

    Boa noite, Sr, Diretor Paulo Quintela

    A data da 3ª prisão ocorre em 20 de Novembro de 1971, e não em 1970 conforme se encontra no texto.

    Agradeço a retificação.

    Saudações.

  12. José Luís Bicho

    Necessitamos de testemunhos assim: circunstância de cultura da memória. ‘O que faz falta’ pra ‘animar a malta’ como canta o poeta. Abraço Eugénio do Zéluís Bicho

    1. Eugénio Ruivo

      Muito obrigado, e especialmente ao Jornal de Mafra, por tão oportuno ouvir nestes anos em que decorre o 50º Aniversário do 25 Abril, como “O dia Mais Limpo” prefaciando a escritora Sophia de Melo Bryner.
      Poetisa que a vi do lado dentro das grades da prisão de Caxias eram 9:30 horas do dia 26 de Abril com uma delegação numerosa de elementos da Comissão Nacional de Socorro Aos Presos Políticos…
      Sim, a Ditadura Fascista existiu, com largas dezenas de milhares de cidadãos que por simples desconfiança… foram privados da Liberdade.

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